Antes do modelo geocêntrico de Ptolomeu, acreditava-se que a terra era plana. Uma perspectiva notoriamente errada do planeta, que inclusive impedia a exploração de rotas mais ousadas no oceano. Quando a idéia da terra esférica foi comprovada e passou a ser aceita, notou-se rapidamente quão ridícula era a idéia da terra plana.
Amanhã eu começo o último capítulo da minha aventura em terras germânicas. Depois eu escrevo sobre esse capítulo, mas nesse post eu queria falar sobre as entrelinhas que separam esse capítulo dos capítulos anteriores. Assim como Ptolomeu, a minha perspectiva é diferente.
Depois de dois longos anos, finalmente estava prestes a ir para casa novamente. A princípio havia planejado ir somente em Dezembro, mas acabei mudando os planos por conta de um concurso. Os argumentos eram matadores, ou seja, trata-se exatamente da minha área, e eu estaria de volta à minha terra natal junto à minha família e amigos. Isso fez então com que eu que adiantasse minha viagem para Outubro.
Sempre sou questionado e instigado a não voltar para o Brasil, por razões óbvias, isto é, a distância astronômica entre o Brasil e Alemanha em termos de qualidade de vida, educação, civilidade e muitos outros. Mas tenho um contrato com o CNPq que me "motiva" fortemente a voltar, muito embora eu sempre tenha alimentado um desejo genuíno de voltar. Além do mais, na minha perspectiva, eu não poderia deixar o Brasil sem antes por em prática o mínimo de mudança que conservei e amadureci durante os anos. O interessante é que a maioria das pessoas que me ouvem falar isso, principalmente as mais velhas, me desmotivam dizendo que isso é dar murro em ponta de faca, mas eu não vou me render. Pois nas palavras sábias do Pit Passarel na música Prelude to Oblivion do bom e velho Viper:
"...because the world won't take example
from somebody who won't fight
for better days and hide away...
...I ask all the world, to follow the song"
Na sala de embarque em Frankfurt, e eu lá perdido em meus pensamentos tendo como pano de fundo descontraídas conversas de outros brasileiros que assim como eu esperavam a chamada para o embarque, um dos funcionários da companhia áerea perguntou se alguém falava português, pois aparentemente alguém tinha um problema e não conseguia se comunicar. Como ninguém se manifestou, eu me ofereci como intérprete. Para resumir, uma garota estava com excesso de bagagem de mão, e portanto teria que pagar 180 euros (aprox. 459 reais na cotação de hoje). Perguntei a ela quanto ela tinha e ela disse apenas 3 euros, para ligar para tia que mora na Alemanha em caso de qualquer problema, apesar de que já estaria muito tarde para tal. Eu disse ao funcionário que ela não tinha dinheiro, ao qual ele desdenhou dizendo que todos dizem a mesma coisa. O excesso se devia basicamente a presentes que a tia da garota estava enviando a familiares. O mais interessante é que outras pessoas com mais de uma bagagem de mão, eventualmente até mais pesadas, passaram sem problem. Não quero aqui julgar o funcionário, pois não sei como funciona o sistema deles de controle, talvez por amostragem, mas a garota era de cor. Sei que tentei de todas as formas ajudar para que uma excessão fosse aberta. Depois de muita conversa, ele abaixou para 40 euros. Ela não tinha dinheiro, e apesar de não conhecê-la, acabei emprestando, pois a garota não tinha ninguém mais a quem recorrer. Isso me rendeu um lamentável comentário do funcionário, dizendo que por causa disso eu poderia eventualmente conseguir favores sexuais da garota. Eu coloquei ele no lugar dele na mesma hora de forma que ele se empertigou envergonhado. Mas não pude deixar de notar que isso na verdade se trata de um retrato de como o Brasil é vendido, ou seja, carnaval, mulatas e sexo fácil. Bom, felizmente a garota era uma pessoa muito decente e a família dela me retornou o dinheiro assim que desembarcamos Salvador. Na minha perspectiva, as pessoas são de bem até que se prove o contrário (com exceção dos políticos).
Dormiria na casa de dois grandes amigos que estão morando em Salvador. Logo no caminho da casa deles, se vê o pior problema do Brasil, ou seja, o abismo social entre ricos e pobres. Na minha perspeciva a diferença social deveria ser equilibrada. Apesar de cansado, saímos para comer a típica lambreta de Salvador. Entre algumas cervejas, relembramos figuras caricatas da nossa adolescência no Marista Maranhense, como o "velho" bombomzeiro que vendia os irritantes "culhões de bode" :) Isso nos rendeu crises espasmódicas de risada. Estava feliz em estar em casa.
Finalmente chego em São Luís. Felicidade em reencontrar meus pais a parte, a primeira coisa que eu notei foi a qualidade (ou falta dela) das ruas. As ruas de São Luís estão absolutamente indecentes, repletas de buracos, bueiros, e ondulações. Outras impressões imediatas foram o trânsito caótico e construção massiva e desordenada de prédios altos e modernos, contrastando fortemente com a ridícula falta de infra-estrutura urbana. Na minha perspectiva, o crescimento urbano tem que andar lado a lado com a infra-estrutura e qualidade dos serviços urbanos, isto é, bom pavimento, transporte público, segurança, limpeza e etc.
Nos próximos dias eu me tranquei em casa para estudar para o concurso. Depois dessa fase, foi a hora de respirar São Luís mais uma vez. Estando fora por tanto tempo, acabei romantizando o Brasil. Na minha cabeça as coisas deveriam estar muito, muito melhores, mesmo tendo doses diárias da realidade trazidas pelos noticiários. Os primeiros dias são sempre difíceis, não vou negar. A sujeira das ruas e praias, a falta de respeito com o ser humano, a arrogância e indiferença da nossa elite burra e ignorante, a explosão da violência urbana e despreparo da polícia, a podridão política descrita no livro honoráveis bandidos, e etc., pois a lista é longa e distinta. Eu não estava preparado para isto, pois as coisas parecem priores do que quando deixei Sao Luis. Felizmente, e contrastando fortemente a isto, estão a brisa e o mar, a minha família e os meus amigos; pessoas de bem, com as quais tive os momentos mais divertidos em dois longos anos. Além é claro de outras pessoas especiais que conheci na minha curta estadia. Pela segunda vez estava feliz em estar em casa.
Já mais relaxado do choque de realidade, ouço um juiz conhecido me dizer: "Rapaz, não volta, aqui só é bom para passear". Aí eu digo: "Não posso, existem compromissos". Ele rebate: "Deixa a união te cobrar". Fala sério!! Ele não sabe o quanto eu me revolto quando ouço isso, ainda mais de uma pessoa que deveria dar bons exemplos! Na minha perspectiva, a "elite" deveria ser espelho de educação, cultura e idoneidade.
A minha perspectiva está errada, o Brasil não é "plano". Mas diferentemente da geometria imutável da terra, ainda acredito que a "geometria" do nosso meio é moldável segundo as nossas próprias perspectivas.