quinta-feira, 29 de maio de 2008

O grito

Na Alemanha, assim como em todos os países e todas as culturas, há aspectos positivos, negativos e simplesmente diferentes. Eu ainda vou falar mais sobre esses contrastes em outra oportunidade, mas o que eu acho mais interessante de notar é que enquanto no Brasil o sistema social nao funciona direito, apesar do povo ser extremamente social, aqui o sistema social funciona extremamente bem, apesar do povo ser (em geral) extremamente individualista. Mas individualismo a parte, a Alemanha é um país onde os bons exemplos sao resguardados com unhas e dentes. Há quem diga que isso ocorra como uma compensacao pelos erros da segunda guerra, mas eu nao sei se o argumento é genérico o suficiente. Seja como for, eu selecionei algumas estorinhas para contar onde eu sou ora coadjuvante, ora protagonista, para exemplificar o culto do bom exemplo pelo povo alemao.

Eu lembro que um dos requisitos para poder se matricular na Universidade no início do meu doutorado era fazer um plano de saúde. Aqui há dois tipos de plano de saúde, um subsidiado pelo governo (mais barato) e os privados, naturalmente mais caros. Geralmente estudantes universitários podem fazer o plano do governo, mas havia uma nova regra em vigor na época na qual estudantes de doutorado só podiam fazer plano privado. Mesmo sabendo disso eu fui no prédio do plano de saúde subsidiado pelo governo para melhor me informar e saber se a tal regra realmente já havia entrado em vigor. Para a minha tristeza era o caso, o que queria dizer que eu teria que procurar rapidamente um plano privado para poder me matricular. Isso representava uma certa dor de cabeca para mim, pois além do plano privado ser mais caro, eu nao tinha a menor idéia de faixas de preco e custo benefício. Ao sair do prédio eu encontrei um amigo mexicano que tinha conhecido recentemente num evento do DAAD (orgao que oferece bolsas de estudo na Alemanha) e que estava mais ou menos na mesma situacao. O interessante é o que o mexicano tinha conseguido fazer o plano e eu nao. "Hum...tem alguma coisa errada aqui", pensei. O mexicano me aconselhou a falar com outra pessoa e decidi seguir o conselho. Para minha surpresa, foi só trocar de atendente que eu consegui fazer o plano. Para falar a verdade, a atendente nao me perguntou se eu era estudante de doutorado, mas como eu apresentei a carta de aceitacao da Universidade e lá constava que eu tinha sido aceito para o programa de doutorado, eu achei que nao havia necessidade de dizer nada. Muito bem, feliz da vida eu volto para a Universidade para pegar o restante da papelada e finalmente me matricular formalmente na Universidade. Na época eu estava dividindo uma sala com estudantes de outros grupos de pesquisa para os quais eu acabei comentando que tinha feito o plano de saúde e estava de saída para fazer minha matrícula. Eles me perguntaram qual tinha sido o plano e eu falei, no qual um deles falou: "Mas tá errado, tu nao pode fazer esse plano sendo doutorando". Eu falei: "É mas ela nao falou nada entao aparentemente tá tudo certo". Ele rebateu: "Deve ter havido um erro, eu vou ligar para lá." Ai eu falei: "Nao te preocupa com isso, deixa que eu resolvo". Na verdade para mim já tava tudo resolvido, eu só queria me matricular e evitar a dor de cabeca de procurar um plano sem ter referencias. O cara me ignorou e comecou a ligar, nessa hora eu pensei: "mas que filho da p*** intrometido". Ele explicou a situacao e realmente a atendente nao tinha atentado para o fato de que a carta mencionava o fato de eu ser doutorando e sendo assim eu devia voltar lá para cancelar o recém feito seguro. Apesar de ele estar certo e eu errado, eu fiquei por muitos dias p*** com esse cara por causa do intrometimento. Alguém pode dizer que eu nao tinha culpa pois o erro foi da atendente, mas se omitir também é errado e sendo assim no final eu estava errado.

Grito nr.1. Quando se está errado engolir um ou outro sapo faz bem, contanto claro que eles sirvam para que os erros nao sejam mais cometidos. E aqui caros leitores, eu já engoli alguns. Assim que comecei a andar de bicicleta aqui eu nao tava muito interado das regras de transito para ciclistas e estava pedalando à noite numa calcada só para pedestres. O interessante é que tanto a calcada quanto a rua estavam desertas, com um fluxo esparso de carros. Um desses esparsos carros passou e me viu pedalando na calcada. O motorista parou o carro e decidiu gritar comigo pelo fato de eu estar pedalando numa área só para pedestres. "Essa área é só para pedestres!!!!". Toda a minha brasilidade veio a tona e o primeiro pensamento foi:"Vai te lascar!! ":) Desculpem minha aparente falta de civilidade, mas felizmente eu só pensei. O que saiu da minha boca na verdade foi:"Desculpe eu nao sabia". O que eu podia dizer afinal?! Eu estava errado e ponto final. Bem, depois disso nunca mais pedalei numa área que nao fosse para ciclistas.

Outro dia eu me atrasei um pouco no caminho para a parada de onibus. Ao ver o onibus chegando eu corri mas o motorista decidiu nao me esperar. O interessante é que 15 metros depois ele parou num sinal de transito, o que me deu o tempo necessário para alcanca-lo. Eu parei na entrada do onibus e pedi para o motorista abrir a porta, no qual ele muito friamente balancou negativamente cabeca. Até hoje quando penso nisso me dá vontade de mostrar o dedo do meio para esse motorista. A culpa é mais uma vez minha por ter me atrasado, e nao tem desculpa de nao saber os horários já que os onibus sao extremamente pontuais e as tabelas de horários estao disponiveis tanto nas paradas quanto na internet. Mas por favor, nao há problema em ser flexível de vez em quando. Eu achei um pouco demais até mesmo para os padroes alemaes, mas o que o motorista queria na verdade era preservar o bom exemplo da pontualidade de forma que outros passageiros nao repetissem o meu "mal exemplo". Na hora eu fiquei p*** com esse motorista e teria lavado a alma mostrando o dedo para ele, mas seria um cara menos civilizado e mais pobre, já que aqui se recebe uma multa ao mostrar o dedo do meio a alguém.

Mais uma com onibus. Eu mais uma vez atrasado vejo o onibus na parada e decido correr. Dessa vez, para a minha surpresa, o motorista resolve me esperar. Eu entro no onibus mostro minha carteira de estudante e passo sem falar nada. Nesse momento o motorista altera a voz e decide me dar uma licao de moral, pois eu nao tinha agradecido por ele ter me esperado. "Ah nao, perai, agora eu mando esse motorista para a casa do c***", pensei. Respirei fundo, e felizmente o que saiu da minha boca foi: "Se esse é o problema entao obrigado". Diplomacia é uma arte na qual eu tenho me apefeicoado. Dessa vez, entretanto, eu nao estava errado, eu nao tinha obrigacao de agradecer, mas ele também nao tinha a obrigacao de me esperar, e além do mais teria sido um bom exemplo para os outros passageiros se eu tivesse agradecido, e portanto no fim o motorista tinha certa razao.

Grito nr.2. Para fechar esse post, uma estorinha que aconteceu recentemente. Eu estava parado na calcada esperando o sinal verde para atravessar a rua quando uma mae com a filhinha para ao meu lado. A mae era bastante jovem e meiga e carregava um sorriso que a deixava ainda mais jovem e bonita. Quase eu pergunto se ela era mae solteira. Eu aqui perdido nos meus pensamentos, quando alguém decide atravessar a rua no sinal vermelho, já que nao tinha nenhum carro a vista. Nessa hora a mae grita: "O sinal tá vermelho!!!!". Sai...!!! Peguei um susto, de repente a mae era qualquer coisa menos meiga. "Eu que nao me meto mais com essa mae, se ela é solteira fez por merecer", pensei. O cara tentou dizer alguma coisa que eu nao entendi, pois ainda nao tinha me recuperado do susto, no qual ela respondeu:"Tu nao tá vendo que tem uma crianca aqui?!". Notem o tamanho do stress só para resguardar a crianca de um mal exemplo. Tirando o stress, ela tá certa, ou seja, a crianca aprende na escola que é errado atravessar no vermelho e de repente tem que se confrontar com o fato de na vida real nao ser bem assim. Nao pude deixar de pensar no famoso quadro "O Grito" de Edvard Munch .


Abrindo um paranteses, eu li a algum tempo atrás uma matéria sobre o fato de pais de alunos de uma escola privada e cara de Sao Luis darem péssimos exemplos ao violarem inúmeras regras de transitos ao buscarem os filhos, causando caos e transtorno na entrada da escola. Tao desperdicando dinheiro, pois ser irresponsável e sem respeito se aprende de graca. Eu já disse antes que no Brasil ser rico nao significa necessariamente ser civilizado?!

Eu já falei sobre a questao dos bons exemplos antes. Nao precisa ser tao extremo quanto aqui, já que isso também deixa o povo constantemente estressado e chato, mas continuo acreditando que o culto ao bom exemplo se traduz numa sociedade mais civilizada.

Um comentário:

Homo heidelbergensis disse...

O grito de liberdade...pois é Leandro, eu concordo e também já vivi situacoes semelhantes a essas delatadas por voce nessa postagem. Mas é sempre bom frizar que o "equilíbrio" aqui comentado (mais ao final) deve ser entre o Grito do Bom Exemplo e o Grito de Liberdade e de "nao à opressao". Contudo, assumo que esse limiar é muito difícil de achar, já que quase niguém se lembra que a "liberdade própria" termina quando a "liberdade do próximo" comeca. Às vezes a existencia do outro é simplesmente esquecida...
Parabéns pelo blog!